quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Sonhar acordado


Contrariamente à maioria dos comuns mortais, sempre adorei fazer grandes viagens de autocarro ou comboio. Recordo com imensa saudade as intermináveis viagens que fazia para a Universidade de Coimbra, não pela paisagem que poderia apreciar, mas pela disponibilidade para sonhar acordado, sem pressas, sem qualquer necessidade premente de chegar ao destino.
Este sentimento, que julgava quase único, o que me levava a disfarçar tão insólito gosto, afinal está magnificamente descrito por Fernando Pessoa.

Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais uma contribuição do patrão Vasques, de uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo os aspectos sempre vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-me em meditações abstractas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações. Não seria capaz de descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de visível.

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego

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