quarta-feira, novembro 26, 2003

Ano mil


Tenho uma paixão desmesurada pela História. Talvez por isso, não compreenda os tratos de polé que esta sofreu no currículo do nosso ensino. Aquela que Marc Bloch definiu como a "ciência dos homens no tempo" afigura-se-me imprescindível para a compreensão do nosso mundo, cada vez mais efémero, mediático e falho de referências.
Urge encontrar o antídoto para o actual reino do fátuo!
O estudo e a leitura de algumas das mais belas páginas de história poderá ser uma experiência enriquecedora, até no plano literário...
Vejam só como Georges Duby descreve o ano mil do nosso Ocidente da cristandade:

Pouquíssimos homens - solidões que para o ocidente, para o norte, para o leste se estendem, se tornam imensas e acabam por cobrir tudo - maninhos, brejos, rios vagabundos, e as charnecas, as matas de corte, os pastos, todas as formas degradadas da floresta que os fogos das brenhas e as semeaduras furtivas dos queimadores de bosques deixam atras de si - aqui e além clareiras, um solo conquistado desta vez, mas apenas meio domado; sulcos ligeiros, irrisórios, traçados numa terra indócil por alfaias de madeira arrastadas por magros bois; neste espaço nutriente de grandes manchas ainda vazias, todos os campos que são deixados de pousio um ano, dois anos, três anos, por vezes dez anos, para que, naturalmente, em repouso, se reconstituam os princípios da sua fertilidade - choças de pedra, de lama ou de ramos, reunidas em lugarejos rodeados por sebes espinhosas e pelo cercado dos quintais - por vezes, no seio das paliçadas que a protegem, a morada dum chefe, um coberto de madeira para o mercado, celeiros, os barracões dos escravos e a fornalha das cozinhas, afastada - de longe em longe, uma cidade, mas que é apenas, penetrado pela natureza rural, o esqueleto embranquecido duma cidade romana, bairros de ruínas que as charruas contornam, uma cerca nem bem nem mal reparada, edifícios de pedra que datam do Império, convertidos em igrejas ou em cidadelas; perto deles, algumas dezenas de cabanas onde vivem vinhateiros, tecelões, ferreiros, Os artesãos domésticos que fabricam, para a guarnição e para o senhor bispo, adornos e armas; duas ou três famílias de judeus enfim que emprestam algum dinheiro sobre penhores - pistas, as longas filas das corveias de transporte, flotilhas de barcas em todos os cursos de água: tal é o Ocidente do ano mil. Rústico, aparece, diante de Bizâncio, diante de Córdova, pobríssimo e desamparado. Um mundo selvagem. Um mundo cercado pela fome.

in Georges Duby, O Tempo das Catedrais, Imprensa Universitária, Editorial Estampa,1979

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